Como é que uma professora de Geografia se transforma em piloto todo-o-terreno?
O todo-o-terreno começou por ser um hobby. Depois de tirar a carta e de comprar uma moto que utilizava como meio de transporte na cidade, comecei a participar nos passeios de todo-o-terreno. Um dia, o meu grupo de amigos decidiu inscrever-se numa prova de competição e acabaram por me incentivar a participar também. Foi um grande desafio, pois achava que não ia ser capaz de fazer nem 70 quilómetros e, afinal, quase terminei essa prova. Apesar de ter desistido (caí num rio e demorei a levantar a moto, porque o motor ficou cheio de água), senti que tinha superado todas as minhas expectativas. Aí concluí que somos muito mais capazes do que acreditamos ser e, talvez por isso, fiquei verdadeiramente apaixonada por esta modalidade. Ficou o desafio de tentar perceber de que é que, afinal, eu era capaz. A partir desse dia, fiz todas as provas do campeonato nacional de todo-o-terreno e, mais tarde, deixei-me seduzir pelas grandes maratonas africanas, pelo Dakar e pelo grande repto que foi a condução do camião.
Aos 54 anos, em 2019, ganhou o Africa Eco Race, na categoria camião, a competição que substituiu o Dakar e para a qual se preparou durante 27 anos. Esse é o grande marco profissional da sua vida?
Vencer o Africa Eco Race foi a realização de um sonho que persegui durante anos e que consistia em ser reconhecida como uma boa piloto. Para isso era preciso vencer uma grande prova. Não teve qualquer impacto profissional dado que, apesar do título, não consegui a verba necessária para voltar a correr. Em termos pessoais foi bom pois consegui o reconhecimento que procurava. Foi preciso vencer a classificação geral da categoria camião para que as pessoas me olhassem como piloto e não apenas como uma mulher que dá nas vistas por participar num desporto maioritariamente masculino. Fica o exemplo de que não há que ceder a estereótipos de género.
No terreno, qual a grande diferença entre o Dakar e a Eco Race?
O rali Dakar foi, durante cerca de 30 anos, a maior maratona de todo-o-terreno do mundo. Uma prova verdadeiramente desafiante para quem nela participava. Em 2009 decidiram abandonar o continente africano e passou a realizar-se em outros lugares, nomeadamente na América Latina e Arábia Saudita. Desta forma mudou a sua personalidade e, embora tenha mantido o nome que remete à sua origem, passou a ter características mais comuns aos outros ralis. O Africa Eco Race foi a prova que herdou todos os traços que o Dakar prescindiu quando abandonou África. Ou seja, o Africa Eco Race é, atualmente, a grande maratona africana, aquela que nos faz ir buscar forças onde não existem para superar todas as dificuldades e chegar ao fim. Sentem-se vencedores todos os que terminam este rali, independentemente da classificação conseguida.
A sustentabilidade está hoje presente em todas as áreas. Sente que o todo-o-terreno também tinha e tem de se adaptar às novas exigências do mundo?
A sustentabilidade deve ser uma preocupação de todos nós, pois é a sobrevivência da nossa espécie assim como a qualidade de vida da mesma que está em causa. Na realidade, o todo-o-terreno, tal como todas as atividades que o homem tem desenvolvido, têm vindo a modificar a sua forma de atuação no sentido de agir de uma forma mais sustentável. Dou-lhe alguns exemplos: o meu camião de competição cumpre a norma europeia de controlo de poluição Euro 5, o que era impensável há uns anos. As organizações têm vindo a revelar-se muito permissivas no sentido de facilitar a integração de veículos elétricos (motos e automóveis) que ainda estão numa fase de ensaio e adaptação e não cumprem o regulamento das provas. Para além disto, apesar dos ralis movimentarem um número elevado de pessoas pelo deserto, conseguiu-se que não deixassem uma pegada negativa. As organizações criaram regras de modo que todos os produtos líquidos contaminantes, resultantes dos trabalhos de mecânica, fossem recolhidos para recipientes próprios. Todo o lixo é igualmente recolhido e há até organizações que transportam consigo um camião incinerador para ir queimando todo o lixo não reciclável. Antes ninguém se preocupava com estes aspetos. Hoje é obrigatório.
"Não há que ceder a estereótipos de género”