Em três adjetivos, como caracteriza o Miguel Vieira de hoje?
Acho que sou bom amigo, perfecionista e um homem muito metódico.
Conte-nos sobre o surgimento da paixão pela moda.
Surgiu do nada, completamente. Geralmente, a maior parte dos designers brincava com bonecas e tal, mas eu era um miúdo que não ligava muito à moda, que vestia o que a mãe obrigava. Andava sempre de calções. Durante bastante tempo foi assim. Entretanto, resolvi tirar um curso de Controlo e Qualidade, que permitia várias especializações. Escolhi a vertente têxtil. Ao mesmo tempo, como tinha um certo jeito para desenhar prédios, pensava em seguir Arquitetura. Para mim, desenhar e falar estavam muito próximos. Muitas vezes, até se tornava mais fácil comunicar a desenhar do que propriamente a verbalizar. Depois, fui convidado a trabalhar numa empresa de confeção para tratar, sobretudo, da parte do controlo e qualidade, mas foi aí que surgiu o gosto pela moda e, um ou dois anos mais tarde, lancei a Miguel Vieira.
Desenvolve, então, a Miguel Vieira em 1988. Como caracteriza o ADN da marca?
Ao longo dos tempos, tentei encontrar alguns detalhes que muito rápida e facilmente permitissem a identificação com a Miguel Vieira. Um dos primeiros pormenores foi a assinatura, em que está explícito o nome da marca. Depois, consegui criar um logótipo, em forma de duas asas, que se associa de imediato à Miguel Vieira. Outro detalhe foi a escolha de uma cor, nomeadamente, o preto. São os tais pormenores que lentamente se vão construindo para que, mais cedo ou mais tarde, se saiba identificar perfeitamente a marca. Um detalhe típico da Miguel Vieira é que, em todos os desfiles, os modelos exibem uma aliança. Um pormenor que é muito simpático para os manequins. Trata-se de um casamento entre o modelo e a marca, apresentando-o como membro da equipa.
Sente que o surgimento da pandemia representou um período preponderante na evolução da marca de luxo?
Para mim, representou um momento maravilhoso da minha vida, porque consegui descansar, algo que já não fazia há muito. Consegui parar e ter tempo para mim. Aproveitei para pensar e repensar em termos de marca. Se vendi muito? Não, não vendi. Muita gente diz o contrário, que vendeu bastante. Eu, pessoalmente, não vejo quem queira comprar um fato para estar em casa, um salto alto para andar em casa...
Portanto, a vertente financeira e de vendas, durante a pandemia, foi bastante complicada. Deu foi para repensar, nomeadamente, na vertente do online. Fui a primeira pessoa a ter um site e uma app em Portugal. Entretanto, fui convidado muitas vezes a fazer vendas online, mas nunca as fiz, porque não queria melindrar os meus clientes de lojas de rua. Portanto, a pandemia foi o momento em que investi no online, já que os meus próprios clientes também começavam a apostar nisso.
Como descreve o seu processo criativo, da ideia à criação?
É um processo abrangente, de muitos meses. São seis meses que, muitas vezes, transbordam para um ou dois anos, isto porque sou um bom observador. Acumulo muitas fotografias na minha mente, tanto de viagens e pessoas que vejo, como da mesa colocada no restaurante. São fotografias que vão ficando. E, quando chega a altura de pensar num tema para desenvolver a nova coleção, vou passando as informações para o papel, fazendo um briefing com toda a equipa para nos focarmos no tema. Imaginemos, agora, que o conteúdo da coleção tem que ver com um determinado filme. Eu faço com que a minha equipa vá para bibliotecas procurar a biografia das pessoas, pesquise na Internet e vá ao cinema ver o filme. Tudo para reter o maior número de detalhes e desenvolver a coleção. Com muita antecedência é feita a seleção de matérias-primas, entre as quais 99% são italianas. Vou a uma feira muito restrita, onde se encontra o topo dos tecidos das marcas internacionais, como Loro Piana, Zegna, entre outras... Para terem uma ideia, já fiz essas compras para 2024. Depois, há, ainda, o processo de organizar os moldes, arranjar as silhuetas, etc. Em último, está o procedimento de montar um desfile.
Quais são os materiais com que mais gosta de trabalhar?
Utiliza matéria-prima nacional?1% dos materiais que uso são portugueses. Muito poucos. Uso lanifícios portugueses, mas, ao longo do tempo, muitos deles têm desaparecido. Estou muito habituado a trabalhar com as marcas de tecidos que anteriormente mencionei. Eu gosto de materiais de boa qualidade. Faz a diferença, porque o costurar é diferente, a maneira de montar um sapato é diferente... Por isso, tento não me desviar desse rumo e nunca baixar a qualidade em termos de matérias-primas.
A sua marca destina-se a todo o tipo de pessoas e tamanhos?
Sim, a coleção é feita no tamanho standard para manequins. É o 48 para homem e o 36 para mulher, em termos de passerelle. Acho que o desfile é um espetáculo e, como tal, as pessoas querem ver modelos elegantes e magros. Não sou contra pessoas mais fortes, no entanto, gosto mais de trabalhar desta forma. Obviamente que cada peça é escalada até ao número máximo. A roupa, por exemplo, é até ao 60 e os sapatos até ao 46.
"... é muito complicado fazer uma coleção dos pés à cabeça 100% sustentável”
Atualmente, fala-se muito sobre sustentabilidade na moda. Já faz dela uma máxima?
Fiz parte da elaboração do Programa do Governo, na vertente da sustentabilidade, há dois mandatos. Sempre dei muita importância à sustentabilidade.
Que novidades sustentáveis podemos esperar da Miguel Vieira?
Cada vez mais, tenho encontrado produtos no estrangeiro que reúnem várias características amigas do ambiente. Entre um produto sustentável e outro não sustentável, escolho sempre o lado da sustentabilidade. Agora, é muito complicado fazer uma coleção dos pés à cabeça 100% sustentável.
Então, ainda é um desafio a sustentabilidade?
Sim, é um desafio. Não há assim tanta oferta nesse sentido. Um determinado produto sustentável pode existir, mas não há a quantidade necessária de fornecedores para dar resposta. Eu quero atacadores de sapatos sustentáveis e vejo a situação complicada para os conseguir arranjar. O mesmo para um fecho, botão, forro de um casaco... Há coisas difíceis de obter. Mas, sim, a equipa do meu atelier está formatada para que tudo seja cada vez mais sustentável.
Onde encontra as fontes de inspiração?
A falar consigo, a falar com o cameraman, a jantar com amigos, a viajar... Passo muito tempo fora. Todas as fontes de inspiração são importantes. Muitas vezes, estar sentado num banco de jardim, a observar as pessoas que passam, inspira-me. É estar a ver e a aprender a moda de rua, que é muito importante. Depois, transformo-a em algo mais luxuoso, através dos seus detalhes.
Foi capaz de dizer "não” à Prada e a outras marcas de luxo. Alguma vez se arrependeu dos sacrifícios que fez para concretizar o sonho de criar a sua própria marca?
Não me arrependi, mas posso dizer que é um percurso muito árduo. Todas as profissões são complicadas. Um médico, para chegar ao estatuto de médico, teve de fazer muitos sacrifícios, estudando durante muitos anos. Aqui, no mundo da moda, é igual.
Em Portugal, as fábricas trabalham, muitas vezes, quase a 100% para fora. Fazem uma coleção e vão para o exterior, não para vender o seu próprio produto, mas para outras marcas irem ao seu encontro, dizendo o que gostam ou não, para depois a fábrica remover a sua etiqueta e fabricar as peças que a marca em questão ditar. Esse nunca foi o meu objetivo. Se tivesse seguido esse caminho, a esta hora teria muitos carros e muitas casas, à semelhança de muitos industriais. Sempre achei muito importante que Portugal, não sendo um país de tradição de moda, tivesse pessoas que pudessem embelezar o país com as suas próprias criações. Quando apresento as minhas coleções numa feira internacional e chega uma marca de primeira linha a apontar as peças de que mais gosta, pedindo para tirar a etiqueta Miguel Vieira e colocar a sua, eu simplesmente digo "pela porta que entrou é pela porta que pode sair”. Portanto, se tivesse seguido outro caminho poderia ser milionário, mas, hoje, sou feliz com aquilo que faço, com a minha marca. Ainda falta muito para atingir todos os meus objetivos, mas acho que, a curto prazo, as coisas poderão dar um salto grande.
Qual foi o momento em que deu conta de que, não só a marca, mas o seu nome começou a crescer?
Ao contrário do que todas as pessoas pensam, eu não comecei por produzir sapatos. Iniciei com uma coleção de roupa de mulher e, bem mais tarde, é que lancei sapatos. Fiz várias coleções e, só depois, organizei os desfiles. Passo a explicar o motivo: por exemplo, não faria sentido se a Prada fizesse um desfile em que os modelos usassem carteiras da Gucci, sapatos da Louis Vuitton, cintos da Brioni e maquilhagem da Chanel. Portanto, tem lógica que a Prada, no seu próprio desfile, tenha a mulher e o homem vestidos da marca dos pés à cabeça. Esse foi sempre o meu objetivo, vestir o manequim com os óculos da minha própria marca, o mesmo em relação às joias, sapatos, cintos, malas... Daí que tenha tido um período não de celibato, mas um tempo destinado à organização das coleções, no sentido de poder apresentar um look completo. Quer a pessoa goste ou não, é tudo produto Miguel Vieira, e considero que o pulo é dado quando se começam a fazer desfiles.
A partir do sucesso dos meus desfiles, as coisas começaram a evoluir, ainda em Portugal. As pessoas começaram a gostar, a associar a marca ao meu nome, começando também a surgir convites para muitos eventos. E, depois, há um percurso que mais se parece a um deserto, porque nunca mais acaba. Temos muitas pessoas no país, de várias áreas, que se acham superestrelas, mas são apenas estrelas em Portugal, onde somos 9 ou 10 milhões de habitantes. Essas pessoas, depois, chegam a Vigo e ninguém sabe quem são. Portanto, fazer um trajeto em Portugal não é complicado, difícil, sim, é chegar a uma Fashion Week em Paris ou Nova Iorque e ser entrevistado pelas grandes revistas internacionais. Ser reconhecido lá fora é complicado e, para mim, ter visibilidade também implica que seja não só em Portugal, mas também em espaços internacionais.
Quais são os requisitos que um designer de moda deve reunir para conquistar o espaço internacional?
Em primeiro lugar, existe uma nova geração e eu, de facto, não tive acesso a ela. É uma geração que tem Instagram, Facebook, Tiktok e mil e uma coisas que, na altura em que eu comecei, não tinha. Hoje, está tudo à distância de um clique e as coisas são muito mais fáceis. No entanto, trata-se de uma nova geração que acha que tudo é possível quando se clica numa aplicação. Muitas das vezes, as pessoas devem abdicar do telemóvel ou do computador porque, quando estamos numa marca de costura, e há uma linha que tem de fazer um percurso gigante, temos de estar preparados para que ela parta e, aí, não será uma aplicação que a vai fazer percorrer o caminho até à agulha. Acho que há uma nova geração que pensa que, para se ser designer ou criador de moda, basta um computador que torna tudo fácil. Também temos de pegar numa tesoura e cortar, de saber improvisar situações inesperadas... e há pessoas que não o sabem fazer. Dou muito valor a essa parte mais prática de fazer as coisas.
"Não temos marcas portuguesas a representar lá fora”