O menino atento, curioso, que gostava de desenhar casas e cidades, é hoje um dos arquitetos e designers de interiores mais reconhecidos do seu tempo. Nacional e internacional. Miguel Câncio Martins soube sempre casar exigência consigo próprio com respeito pelos clientes e pela envolvente dos seus projetos. O homem que idealizou o aclamado Hotel Quinta da Comporta ainda não pôs de lado o sonho de ser o maestro que vai guiar uma das regiões mais atrativas do país pelo caminho da sustentabilidade e do respeito pela população e pelo ambiente. Enquanto luta por isso, não desiste de fazer tudo o que está ao seu alcance para melhorar o mundo com os seus projetos. Seja um bar, um hotel, um casino, uma casa. Com ele, tem uma equipa que rema na mesma direção. Além de extremamente afável, Miguel Câncio Martins não padece de falta de humildade. Reconhece-se um grande homem, quando os seus olhos brilham no momento de regressar ao instante em que tudo começou.
Sempre soube que queria ser arquiteto ou designer de interiores, ou como é que isso se começa a desenhar na sua vida?
Acho que começou quando eu era criança. O meu pai era arquiteto, mas deixou de exercer bastante cedo. E, ao princípio, eu dizia isso, que também queria ser. A verdade é que gostava bastante de desenhar, sempre desenhei cidades e casas e, por isso, sempre gostei de arquitetura e sempre tive um bom sentido de observação, além de ser muito curioso. Portanto, achei que a minha vocação era essa. Depois, queria participar e deixar a minha pegadazinha neste mundo. E, realmente, este é um trabalho onde se realizam coisas. É um grande estímulo quando se consegue realizar bem os projetos, é como ter uma recompensa, fica-se feliz. Fica-se orgulhoso.
Estudou em Bruxelas e começou por trabalhar em Paris. Como é que estas experiências acontecem?
É uma daquelas coisas com que se resmunga em criança, mas depois, quando se tem esta formação e esta bagagem, fica-se contente. Comecei por estudar na escola alemã em Lisboa até que fui, com 15 anos, para Paris, porque o meu pai foi trabalhar para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Ficámos lá seis anos. Posteriormente, rumamos a Bruxelas, porque ele começou a trabalhar na adesão de Portugal à Comunidade Europeia. E como acompanhei os meus pais, acabei por estudar Arquitetura em Bruxelas. Quando acabei o curso, decidi regressar a Paris para iniciar a minha carreira, porque era onde eu tinha mais ligações, mais contactos, e onde eu gostava de viver. Voltei sozinho e fiquei lá sete largos anos a trabalhar. Tive a sorte de me darem logo um bar para fazer, e foi um sucesso. A seguir, foi uma bola de neve – quando alguém tem sucesso numa coisa, chamam-no logo para outra e para outra e para outra. De um momento para o outro, deixei de estar sozinho a trabalhar na sala de jantar de casa e passei a ter um escritório, duas ou três pessoas a trabalhar comigo, uma assistente… Foi tudo relativamente rápido.
E assim, logo nesse início de carreira, acabou muito ligado à restauração…
É interessante, como se diz às vezes, o mal de uns é o bem dos outros. No fundo, quando acabei os meus estudos, deu-se a crise do Golfo, e eu tinha-me candidatado a uns cinquenta gabinetes de arquitetura conhecidos, com os quais uma pessoa sonha, mas nenhum deles me deu um contrato. Por isso, fiquei um bocado dececionado, porque queria mostrar o que eu tinha aprendido. Foi nessa altura que surgiu a oportunidade de criar um bar, mais pelo lado social, que chegou até mim pelos meus conhecimentos, mas que teve bastante sucesso e depois começaram a pedir-me para fazer mais um bar, depois um restaurante, depois vieram propostas do estrangeiro e foi assim que comecei a ter uma projeção internacional bastante rápida. No meu caso, comecei logo a trabalhar muito bem para Singapura, Montreal, Marraquexe, Londres, Nova Iorque, Los Angeles, e pelo mundo fora. Tudo ao mesmo tempo, e foi também a minha maneira de adquirir mais conhecimentos, porque eu ainda estava a aprender. Tive a sorte de me darem projetos muito interessantes para as mãos, e aprendi muito com as empresas, com os canalizadores, com os carpinteiros. Aí aprendi muito mais do que na escola.
E esse bar, aquele primeiro filho, ainda existe?
O BOOBIES ainda existe, sim… Imagine, desde 92, vai fazer agora 30 anos!
E a dada altura, acaba por querer voltar a Portugal. O que aconteceu?
Eu já estava a fazer vários projetos importantes em Portugal. Em 2015, havia muitas oportunidades em Portugal e como achei que a minha vida precisava de uma mudança, mudei. Na altura, tinha 14 pessoas a trabalhar comigo, um escritório, os projetos caíam uns atrás dos outros, mas não era bem isso que eu queria. Queria era fazer mais projetos pessoais, sobretudo o Hotel da Quinta da Comporta. Já tinha falado em tempos (nos anos 90) com a família Espírito Santo para lhes dizer que queria fazer ali um hotel, aquilo era deles mas, na altura, não foi para a frente. Mais tarde, com a crise surgiu uma oportunidade de comprar o terreno e finalmente realizar este hotel dos meus sonhos. Já pensava naquilo há 25 anos.
"Os meus clientes estão cada vez mais preocupados e interessados em perceber a melhor maneira de aplicar a sustentabilidade"
Fiz vários que me agradaram. Mas na vida quando nos pedem para escolher três, escolhemos três (risos). O Buddha bar, em Paris, é de certeza, o projeto mais emblemático e que mudou bastantes coisas no setor da restauração e da decoração. E, portanto, aí tenho muito orgulho no sucesso deste projeto (de 1996), que continua a ser uma referência ao fim destes anos todos, por isso, é o projeto número um. O número dois é o Hotel Quinta da Comporta, em Portugal, porque foi um projeto em que tratámos de tudo desde a arquitetura à decoração, passando pelo paisagismo. Portanto estive envolvido em tudo e ainda estou. E agora para além da arquitetura/decoração, jardinagem ou manutenção, estou envolvido na organização e na própria gestão do hotel. É um hotel bastante emblemático e está a ter bastante impacto a nível internacional. Estou orgulhoso porque começa a ter o seu lugar entre os melhores hotéis internacionais. O terceiro projeto eu diria que é o Raffles Bar & Billiard num emblemático hotel colonial em Singapura. Na altura fiz o Bar & Billiard num local onde, ao que parece, os caçadores tinham morto um tigre, expondo-o em cima da mesa do bilhar. Gostei muito de ter feito parte deste projeto histórico.
Enquanto arquiteto e designer de interiores é mais de intervir ou de seguir à risca os pedidos dos clientes?
Eu digo sempre e é esse o meu espírito e a minha atitude: eu faço os projetos para os clientes. Os clientes é que vão viver com eles. Infelizmente, há muitos arquitetos que acham que os projetos são deles, para eles, e que tem de ser à sua maneira e que não se pode mudar nada. Eu tenho uma atitude completamente diferente. Acho que o projeto é para o cliente e, portanto, a primeira coisa é ouvi-lo com atenção, essencialmente, ouvir o que ele quer. Ou seja, há toda uma fase de análise, quase psicológica, de perceber as ambições e preocupações do cliente. E depois tentar conceber um projeto que vá também ao encontro das minhas ideias, porque se o cliente vem ter comigo é porque tem confiança em mim, quer a minha criatividade e a minha inspiração. Às vezes, eles têm umas ideias fixas e acho que é sempre importante mostrar-lhes que há outra forma de ver as coisas. Costuma funcionar na maior parte das vezes. Mas o cliente é a peça mais importante do puzzle. Depois, nesta parte da criatividade, é lógico que uma pessoa não está sempre inspirada e há prazos para respeitar. E eu gosto de ser perfecionista, tenho umas primeiras ideias e gosto de as voltar ao avesso, de pensar de várias maneiras, de fazer uma apresentação, ver a aceitação do cliente, de o ouvir, de adaptar os projetos até estarem realmente no caminho certo, só então começamos a trabalhar mais nos pormenores, a entrar em detalhes dos materiais e nos acabamentos. Também gosto muito de controlar tudo no que à técnica diz respeito, gosto de ser eu a dizer às especialidades onde quero passar as coisas e não o contrário. Gosto de ser eu a dirigir. E gosto de me sentar à mesa com os meus colaboradores, porque não sou eu sozinho que invento a roda. Quando uma pessoa tem tantos projetos como eu, ao mesmo tempo, tem de ter uma equipa.
Se tivesse de se auto caracterizar enquanto arquiteto, que palavra usaria?
Chato!? (risos) Exigente, acho que seria a mais adequada. Exigente com os outros, mas exigente comigo também, porque primeiro temos de ser exigentes connosco próprios para depois o podermos ser com os outros.
"O QUE EU GOSTAVA MESMO DE DIRIGIR ERA AQUELA ZONA DA COMPORTA"
Há pouco falava na Quinta da Comporta, um modelo de sustentabilidade. Desde sempre teve presente nos seus projetos esta preocupação ambiental ou é algo que começa agora a ser pedido pelos clientes?
Graças a Deus, os meus clientes estão cada vez mais preocupados e interessados em perceber a melhor maneira de aplicar a sustentabilidade. E eu também porque andei numa escola alemã e na Alemanha já existem os partidos "Verdes” há imenso tempo, ou seja, já tinha esse contacto, aproximação a esse tema há bastante tempo, essa preocupação pela economia da energia, etc. Por exemplo, quando comecei a fazer a Quinta da Comporta, uma das coisas que eu disse foi: quero recuperar as águas das chuvas e das regas. E as pessoas até se riram e diziam-me: mas aqui há tanta água. E eu respondia: há água, mas a 50 quilómetros daqui já não há. Não vamos salvar o planeta sozinhos, mas se cada um fizer uma parte do caminho isso terá impacto no clima, e poderá ajudar a melhorar o mundo para os nossos filhos. É importante ter uma atitude responsável e pensar em todas as soluções que sejam boas e propícias para a sustentabilidade. Depois, também não escondo que tem de haver um lado económico atrativo. E, se todos aderirem, o lado económico também começa a ser mais interessante. Ao princípio, quando os primeiros painéis solares apareceram, eram caros. Agora, é diferente. E também não quero ser radical. Em França querem muito incutir nas pessoas que a energia nuclear é a mais limpa de todas. É a mais limpa até haver um acidente. Acham que o nuclear é mais limpo que a energia solar e as eólicas, mas mesmo estas últimas, por exemplo, também já causam problemas, com o barulho e a perturbação dos passarinhos, e aqueles tubos quando tem de se desmontar fica ali um monte de lixo…é lógico que estamos ainda no princípio destas soluções ecológicas, mas acho que vale a pena tentar, vale a pena explorar estes caminhos. Acho que na construção e enquanto arquitetos, nós somos responsáveis por encontrar uma solução para ajudar a controlar o clima.
Eu via na Comporta, as primeiras casas que os construtores locais faziam, com aquelas paredes finas, pareciam as casas dos três porquinhos, com um sopro aquilo quase que ia ao ar. Hoje, estão todos muito mais conscientes e há muito mais a preocupação em isolar bem as habitações, telhados, paredes, chão, utilizam-se sistemas com controlos de energia. E isto tudo são tudo questões para as quais o arquiteto tem de ter sensibilidade, tem de perceber, e tem de se rodear de peritos para o ajudar a resolver estas situações. No consumo de águas, por exemplo, eu gosto de ver marcas de torneiras que estão a investir em novos sistemas, que misturam ar e água e quando uma pessoa está a tomar um duche gasta muito menos água. Por exemplo, lá no Hotel Quinta da Comporta, temos todo um sistema de recuperação das águas. Concluindo, os arquitetos têm um papel essencial nesta profissão. Eu sei que não vou salvar o mundo, mas se fizermos uma parte do caminho, os outros ao lado vão fazer igual e se toda a gente fizer, melhoramos as condições.
Disse certa vez que gosta de ser o maestro da orquestra. Qual era o concerto que mais gostava de dirigir, o seu grande sonho que ainda está por realizar?
O que eu gostava mesmo de dirigir era aquela zona da Comporta, arranjar um grupo de pessoas que gostam tanto da Comporta como eu, porque aquilo pode ser um modelo, mas não a podemos estragar. Temos ali uma situação desastrosa com a falência no Luxemburgo, com os terrenos da Comporta arrestados junto da Procuradoria da República, escondendo os interesses de uns e de outros, pensando pouco no interesse da região, dos habitantes e dos visitantes. Este é um projeto de vida para os próximos anos, e eu gostava de juntar uma equipa, os responsáveis e pessoas locais, para desenvolver com pés e cabeça aquela zona: ligar a parte agrícola à turística, ajudar a população local a ter um desenvolvimento inteligente e sustentável, porque aquilo tem tudo para isso. É pena que haja ali tantas resistências que parecem não querer resolver o problema.